domingo, 23 de maio de 2010

Em Iperó jovens recuperam prédios históricos da ferrovia






A cidade de Iperó pode parecer não ter muito o que contar para quem atravessa rapidamente seu centro comercial de carro. Com cerca de 25 mil habitantes, o município guarda histórias do passado e do presente que só se revelam a quem se debruça numa observação mais apurada. Iperó tem uma forte tradição ferroviária, pois fica no entroncamento entre dois importantes ramais da malha ferroviária do estado. Com a desativação do transporte de passageiros e sucateamento do sistema, os prédios deixados pela ferrovia estavam abandonados. Mas uma iniciativa está fazendo o patrimônio voltar à vida pelas mãos de jovens que também estão construindo o próprio futuro.

Trata-se do Poeao (Projeto Oficina-Escola de Artes e Ofícios), programa implantado pela Prefeitura local. O Poeao ensina o ofício da restauração de prédios históricos a jovens da cidade. O destaque do trabalho dessa turma é a revitalização que está proporcionando ao conjunto de prédios ferroviários de Iperó, que antigamente formavam o centro comercial da cidade. Atualmente a região onde ficam é chamada de “Centro Velho”.


Prédios

Desde que chegou a Iperó, em 2006, o Poeao recuperou fachadas das antigas casas dos trabaladores da ferrovia. São casas padronizadas, implantadas pela Estrada de Ferro Sorocabana, e que têm o estilo arquitetônico aconchegante e característico da primeira metade do século passado. “A Sorocabana fazia pintura e manutenção, mas desde que passou para a Fepasa ninguém veio mais”, conta o ex-ferroviário Antonio Carlos Moraga Ramos que mora há 27 anos na residência construída para funcionários da linha férrea.


Outro destaque é o prédio do Pernoite, casarão onde os maquinistas pernoitavam quando trocavam de turno em Iperó. A construção fez parte da identidade da cidade por mais de 50 anos em que esteve em funcionamento. Algum tempo depois se tornou sede do Sindicato dos Ferroviários local. Após ficar abandonado, o Pernoite foi totalmente restaurado pelo Poeao e hoje é sede de uma bem sucedida escola de escultura em argila para outros jovens da comunidade.






No bairro de George Oetterer, distante 22 quilômetros do Centro de Iperó, e próximo à divisa com a cidade de Sorocaba, fica outra realização do projeto. Os garotos restauraram a igreja de São Jorge, um dos prédios históricos mais importantes do bairro e que ainda está ativo. Atualmente os jovens trabalham na recuperação do antigo armazém de triagem de cargas da época da ferrovia. O prédio será utilizado como nova sede do projeto de convivência da terceira idade de Iperó.


Histórico

Criado pelo restaurador Júlio Barros, o Poeao surgiu nos anos 80 na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais. Chegou a Iperó há quatro anos, e hoje é mantido por uma parceria entre Prefeitura e Senai-SP, que emite a certificação dos alunos. “Nosso objetivo é formar mão de obra para o restauro com a inclusão de jovens em dificuldade social. Desta forma promovemos também a desetilização deste ofício”, explica Barros.


Personagens

O projeto guarda histórias como a de Gilmar Vitorino de Souza Estrela,19 anos. Ele entrou no projeto em 2006, depois de passar por problemas em casa. “Somos em seis filhos, família pobre... Meu pai faltava com o papel, deixava faltar coisas em casa. Um dia eu e meu irmão tivemos desavença com meu pai e minha mãe procurou o Conselho Tutelar. Foi através do Conselho que eu entrei no projeto”.


Foi a oportunidade para Gilmar começar a trilhar um caminho pelo qual já tinha certo gosto, já que conta que sempre se interessou por resturação. “Acho muito interessante a parte de preservação de patrimônio”. Hoje pretende ser um engenheiro. Os primeiros passos para chegar lá ele já deu. Atualmente ele coordena os colegas na obra do armazém, pois foi promovido a monitor do projeto. Até a relação com o pai melhorou.”Hoje ele me liga e pergunta do serviço. Antes nunca conversava sobre como eu estava indo na escola”.


Aliás, o canteiro de obras do Poeao tem uma garotada diferente dos jovens que econtramos normalmente. Gilmar fala com com desenvoltura e usa com naturalidade termos como “pedreiro moderno” e “pedreiro colonial”. “Nas nossas restaurações usamos terra e argila, buscando sempre colocar elementos da natureza”. Enquanto trabalham, o celular de alguém toca música o tempo todo. Nada de rock, black, pagode ou sertanejo. O que animava o local era o som do repente. Pandeiro e violao acompanham dois cantores que se desafiam num jogo de rimas.

Outro jovem se aproxima para contar sua história. “Fiquei sabendo do Poeao por causa de amigos. Nunca tinha mexido com construção, mas hoje eu sou monitor também”, explica Michael Douglas Dias Spíndola, 17 anos. “No começo foi bem difícil. Este prédio do armazém é o primeiro em que estou trabalhando. Tivemos que tirar muitas camadas de tinta velha com a espátula e desmanchar os banheiros. Bastante trabalhoso”. O garoto acredita que virou monitor por ter força de vontade e ser organizado.


Na fachada recém pintada de branco com detalhes amarelos, uma pequena bola azul feita com spray no canto direito do prédio parece deslocada no ambiente. “Isso aí foi na semana passada. Diz que os caras iam pichar e a polícia pegou no flagra”, conta Michael, indignado.


Ao redor do prédio, vários vagões da ALL jazem abandonados, acumulando entulho e mato. É local para todo tipo de gente. ”Direto tem os caras fumando e camisinha usada por aí”, conta Michael. O rapaz pretende seguir uma carreira diferente da de restaurador. “Quero fazer enfermagem, mas se não der certo, já tenho isso aqui”.


Estação

As obras dos garotos do Poeao até agora estão servindo como um excelente treinamento para o maior desafio da cidade: recuperar a estação ferroviária.O local foi o coração de Iperó durante o período de ouro da ferrovia, e hoje está absolutamente depredado, abrigando usuários de drogas. As pessoas aceleram o passo quando passam por lá, pois fica no caminho para diversos bairros.

O governo estadual já liberou verba de R$300 mil e a Prefeitura vai arcar com R$135 mil para a recuperação do local, que ficará a cargo do Poeao. A intenção é implantar na estação um Centro Cultural com oficinas e atividades para a comunidade. A restauração deve durar dois anos. A obra deve começar ainda neste ano, após a entrega do prédio do armazém.



Tiozinho do Picolé, a alegria em pessoa



Esse personagem é muito querido na cidade de Iperó/SP.

“Todo mundo qué/ todo mundo qué/ ficar numa boa/ chupando um bom picolé!”. Muita gente sai de casa catando moedas e espera na beira da calçada quando ouve uma voz rouca, mas firme, cantando versos sobre as maravilhas do sorvete de palito. Um senhor magro dobra a esquina empurrando seu carrinho e logo é rodeado por crianças, mães, rapazes, e quem mais estiver a fim de refrescar o calor com sabores que vão do limão básico ao Skimo, com sua cobertura um tanto borrachuda de chocolate.

Em Iperó não há quem não conheça o Tiozinho do Picolé, 67 anos, que mais que um sorveteiro é um personagem folclórico. Percorre a cidade entoando suas músicas, quase “cantigas publicitárias”, num conjunto de jaleco e boné brancos bordados com seu apelido - “minha filha Márcia que me deu”, faz questão de dizer - e o carrinho incrementado onde se lê o slogan “tem prá home, tem prá muié, só não chupa quem não qué”!

“O problema de andar na rua o tempo todo é que às vezes não tem banheiro”. E é verdade. Depois de vender quatro picolés para dois velhos fregueses, Tiozinho pede atenção e, sem graça, cochicha no ouvido de um, feito criança insegura. Recebe sorriso e tapinha nas costas. Então o homem do picolé entra pela sala. Da calçada o dono do banheiro dá o toque: “Terceira porta à esquerda!”

Tiozinho vive preocupado em mostrar vigor e disposição. Ele conta que sua filha sempre acha que o pai está “ruim”. “A Márcia fica sempre brigando comigo porque eu bebo. Mas eu não fumo, não tomo pinga. Só gosto de cerveja e não misturo!”. Quando nos encontramos, Tiozinho estava um pouco agitado, parecia não ordenar bem as idéias. À sua volta, algumas latas de cerveja vazias. “Só tomei duas que eu paguei e os amigos pagaram o resto”. Pedi para irmos andando. No começo do trajeto, é ele quem pediu: “liga pra minha filha e fala que eu tô bem”. Aos poucos o vendedor se solta, as músicas vão aparecendo e os fregueses fazem o carrinho ficar cada vez mais leve.


Os fartos cabelos brancos e o bigode fino que compõem a figura esguia não negam a origem sueca do guerreiro. Ele trabalha todos os dias, sempre no período da tarde.”Os novos de hoje não fazem nem metade do que eu faço, do que eu ando”, se orgulha o Tio. E o senhorzinho parece incansável, toma água oferecida pelos clientes, seja em casas, em oficinas mecânicas ou no comércio. “Já teve dia em que vendi 130 reais de sorvete”, conta. Cada picolé sai por 80 centavos e dificilmente sobra algum quando ele volta para casa no fim do dia. Aí a estratégia é promover os bombons gelados – sorvetes de massa cobertos de chocolate – que custam R$3,00. Marqueteiro, no fim da tarde lá vai o Tiozinho cantando: “Não fique na mão/Não fique na mão/Cabô os picolé/Mas eu tenho os bombom”.



Com 25 mil habitantes Iperó tem na avenida Paulo Antunes Moreira seu epicentro comercial. Quando Tiozinho chega na principal passarela da cidade, a anunciação vai na frente: “de bem ca vida/de bem ca vida/ é o picolé que tá chegando na avenida”! Não há quem não simpatize quando ele passa. Os jovens abrem um sorriso maroto com o “só não chupa quem não qué”. O fato é que Gagliardi inspira pureza e uma certa inocência com a sua espontaneidade. Foram estes mesmos jovens que o levaram-no para a internet. Sua comunidade no orkut já tem mais de 700 membros, embora ele só tenha uma vaga noção do que isso seja. “Deve ser uma coisa especial né?”

Tão especial que chamou a atenção de uma TV regional que veio a Iperó fazer uma reportagem sobre o Tiozinho. O carrinho que pesava muito, feinho, foi reformado. O piloto ganhou uniforme, banquinho portátil, guarda-sol e pintura personalizada no carrinho, que recebeu materiais mais leves. Se ele era conhecido, agora que se tornou famoso vende mais sorvete.

As músicas para vender o produto não vieram logo de cara. No começo ele chamava a atenção do modo tradicional, com uma buzina. “Mas ela quebrava muito, então eu resolvi chamar o povo na garganta mesmo”, explica. Durante o inverno, Tiozinho pendura o jaleco e vive de bicos. Vende rifas, latinhas de alumínio e tem disposição para pegar na enxada e carpir. Mas ele sabe bem qual é a paixão. “Eu amo o que faço. Não fico parado, gosto de sair cantando”.

“Tô gostando dessa pesquisa que você tá fazendo comigo. Agora fala pra mim, sou campeão ou não sou?”. É, Tiozinho. Nos lábios, mais um sorriso.