sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Um fim


Ela estava tranquila enquanto caminhava para a morte. A aceitaria com resignação. Estaria livre, finalmente. Livre de toda a dor e finalmente livre das injustiças que sofreu.

Caminhou pelo cadafalso docemente. Ajoelhou-se, mãos amarradas para trás. Deitou o tenro pescoço onde tinha que deitá-lo. Fechou os olhos. Não sentiu o golpe mortal. Sua cabeça se aninhou quase suavemente no cesto a sua frente. Sangue. Estava acabado.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

No escritório


Ele observava os dedos fazerem movimentos rápidos, voando sobre as teclas e apertando numa velocidade que seus olhos mal podiam acompanhar. E o barulho insistente, tec-tec-tec. Uma sinfonia que penetrava nos ouvidos e tomava o ritmo de música eletrônica, acachapante.

Mas ele não tinha vontade de dançar. Não. Ele sentia que seus dedos não foram feitos para movimentos tão finos e coordenados. Eles estavam acostumados a ser parte de um sistema mais rude, dedos fortes que carregam a enxada, dedos grossos de calos de tanto trabalhar a terra. Tardes intermináveis com seu pai na roça plantando de tudo e carpindo, carpindo sem parar.

Agora não, agora ele estava ali, numa sala fechada no meio de computadores, com uma oportunidade na mão e muita saudade no coração. Seus dedos ainda estão calejados e seu coração sente o chamado de lá fora, do ar fresco, do mato. Saudade de tomar água na beira do riacho e de chupar manga depois do almoço.

Tudo isso ficou para trás. O pai morreu e o tio o levou para a cidade dando este novo emprego de auxiliar administrativo. Ali não tinha mais enxada, tinha computador, não tinha mais manga no pé, tinha mouse. O café era de uma máquina barulhenta e tinha gosto de sola de sapato. As meninas eram bonitas, mas isso não lhe despertava o interesse, apenas o deixava mais acanhado com tudo.

Suava frio. Após uma rápida explicação, lhe deram o primeiro documento para digitar. Os dedos não voaram em um balé coordenado, foram lentos caçando cada letra, chuviscos espaçados que demoraram a preencher o papel virtual daquela tela luminosa que o incomodava com sua claridade. Seu tec tec ia assim, como quem catava milho com as pontas dos dedos, e disso ele entendia porque na roça eles tinham galinha e desde criança ele gostava de chamá-las jogando o milho na terra.

Sentia os dedos duros, reclamando daquele trabalho tão pesado de voar sobre as teclas. Doeu até os pulsos. Não percebeu a ironia da situação, de como largou o trabalho braçal no campo, que para ele, se era sofrido, também era tão natural, e caiu na provação cruel de um escritório. Não reclamou. Pensou, “amanhã vou trazer uma manga”.