terça-feira, 27 de maio de 2014

Jogo de palavras


A crise da água paulista trouxe à tona um problema de vocabulário para Geraldo Alckmin. Conforme as torneiras secam, aumenta o contorcionismo linguístico do governo para amenizar a situação. 

Veja, uma especulada multa para quem consumir acima do habitual foi chamada pelo governador de sobretaxa. Quem mora na região metropolitana sabe que tem dia e hora certa para faltar água. Mas o que acontece não é um racionamento e sim uma intermitência no abastecimento, conforme a Sabesp. Tá bom.

Isso me fez lembrar que outras coisas já não se chamam mais como eu aprendi.

As pessoas não morrem mais de derrame. Têm um AVC. O doce que o pequeno Pedro chamaria de bolinho, hoje tem o nome de cupcake. Talvez digam que cupcake não é um bolinho diferente, mas sim diferenciado, que é o diferente especial.

Favela virou comunidade. Deficiente virou portador de deficiência. Valesca Popozuda tirou da obscuridade um termo psiquiátrico - recalque - e o colocou como substituto de inveja no Aurélio das ruas.

Por mais que algumas coisas mudem ao sabor do gosto do povo, outras palavras permanecem amarradas para sempre numa mesma expressão.

A távola sempre será redonda, a meada sempre vai ter um fio (às vezes perdido). Quem não tem eira, também fica sem beira.

A resposta estaria nas gavetas do engavetamento?


quinta-feira, 15 de maio de 2014

Me convoca, Dilma!


Felipão já convocou seus jogadores, mas para mim ainda falta o Fred para fechar a seleção. Sua vaga está lá esperando. Se a 30 dias da Copa ainda tem estádio em obras, Dilma já pode me escalar na reforma ministerial: vinha completando uma arena por semana até outro dia, mas aí a grana para as figurinhas acabou. “Nada que prejudique a #CopadasCopas”, postaria nossa presidenta-competenta.

A febre do álbum da Copa me parece um oásis de entusiasmo num deserto de desilusão neste mês que precede o Mundial. Não é preciso repetir aqui as razões para a má vontade – ou mesmo raiva – com a Copa. As manchetes dão replays dos gols contra administrativos todos os dias.

Porém, percebo que o colecionismo das figurinhas se conectou com um amor pelo futebol que temos dentro de nós e que vem antes do ódio pelos maus governos. Mais que isso, os pacotinhos de cinco adesivos por 1 real conseguiu nos fazer curtir, comentar e compartilhar com os amigos no modo offline e carne e osso.

Me surpreendi em ver o volume de pessoas se divertindo em colar fotos num catálogo de papel. Por um momento, deixamos de ser essas criaturas hiperdigitais do 3º milênio para curtir um hobby tão velho quanto o Zagallo..

Porém, ainda não vejo as ruas pintadas de verde e amarelo. Poucos comércios estão enfeitados. Muitos se limitam a exibir na parte da frente suas cornetas e outros apetrechos à venda para torcedores. O cima de Copa custa a nascer.

Há sete anos a Copa era vista pelo governo e imprensa como uma vitrine do Brasil para o mundo. Mostraríamos a força de um país que deixava a lama rumo ao Olimpo do planeta.

E não é que eles estavam certos?

A Copa serve como vitrine sim, mas para mostrar para o mundo aquilo que já conhecemos: incompetência para entregar o que é prometido, superfaturamento e descaso com as necessidades básicas do povo.

Essa vai ser a Copa do “estádios e olhe lá”. O torcedor estrangeiro pode esperar o que o brasileiro tem: um lugar para sentar a bunda e ver o jogo. Vai ser trânsito para chegar, para sair, fila, falta de informação, comida cara. E dê-se por satisfeito.


Ah sim, e o legado da Copa? Um álbum com figurinhas de estádios em obras para guardar de recordação.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

De Pato pra Ganso


O São Paulo acabou sendo o time que emprega duas decepcionantes ausências na lista dos convocados para a Copa do Mundo de 2014. Alexandre Pato e Paulo Henrique Ganso perdem sua segunda Copa consecutiva. Culpa deles próprios.

No caso de Pato, dá para traçar um paralelo com Neymar. O santista teve tempo de provar seu talento, indo além das jogadas impressionantes. Ganhou títulos, conquistou a Libertadores e foi sempre o protagonista. Mesmo que nunca mais venha a jogar pelo Santos, já cravou seu nome na história do clube. Foi para a Europa quando não havia mais degrau para subir no Brasil.

Já Pato foi alçado à condição de super-craque graças fazendo menos de 30 partidas pelo Internacional. Não teve tempo para liderar uma campanha longa que resultou num título.

Na Itália, as sucessivas lesões minaram sua frequência em campo e o tiraram da Copa da África do Sul, em 2010. Fatalidade.

Corta para o Ganso.

Sua visão de jogo, passes precisos, dribles curtos e muita categoria o alçaram à condição de melhor meio-campista do país.

Dunga foi infernizado para levar a dupla Neymar-Ganso para a África. Muitos garantiam que ao menos a presença de Paulo Henrique era fundamental. Ganso não foi convocado e perdeu sua primeira Copa.

Enquanto boa parte do brilho de Neymar no Santos se deve ao fato dele não ter se machucado, Ganso ficou mais de seis meses parado após romper os ligamentos do joelho. Vejo esse fator como determinante em sua carreira, pois foi ali que perdeu sua regularidade no rendimento.

Sentindo-se desvalorizado diante dos privilégios de Neymar, Ganso foi para o São Paulo  - um plano B onde teria mais espaço e o status de grande contratação. Saiu brigado com a torcida santista e com o futebol em baixa,

Volta para Pato.

O momento decisivo na carreira de Pato foi sua decisão de trocar a Itália pelo Corinthians. Arriscado, pois o esquema tático de Tite não tinha espaço para ele e seu perfil era muito diferente do jogador raçudo e brigador que faz o gosto da torcida.

Deu a lógica: sua passagem pelo Parque São Jorge foi marcada pela displicência e falta de comprometimento. 

Mostrou deficiência em fundamentos, perdeu muitos gols, se escondia entre os zagueiros... A inaceitável cavadinha defendida por Dida foi o retrato acabado do jogador que se coloca acima do grupo e cultiva a pose. Nada podia ser pior diante dos olhos de Felipão.

Desmoralizado, Pato foi para onde deveria ter ido antes, o São Paulo. Visivelmente mais à vontade, tenta encontrar seu bom futebol, mas é tarde demais.

No Morumbi encontrou um Ganso que há um ano tenta provar que é mais do que uma miragem do passado. Está difícil com o ritmo de uma jogada boa a cada três jogos ruins. Seu estilo de jogo refinado hoje é visto como lento e o jogador - claramente orientado por seus agentes - tenta desviar o foco dando entrevistas em que se diz acima da média e criticando o esquema do treinador. Deprimente.

"De Pato para Ganso", assim como no infame trocadilho, nada muda no destino dos jogadores, apesar das histórias diferentes. Tinham tudo para ser titulares nesta histórica Copa, mas morreram abraçados. Quem sabe na próxima...

terça-feira, 6 de maio de 2014

O Poço


Quando a privada mortal estourou o crânio de um torcedor em Pernambuco, o barulho que ouvi foi o eco de uma pedra que encontrou o fundo do poço.

No parapeito de um estádio de futebol, com a porcelana nas mãos, o agora identificado como Everton Filipe Santana era a semelhança de alguém que encosta na borda de um poço no meio do mato e quer saber se é fundo. Ao jogar uma pedrinha lá dentro, o sujeito consegue ter uma noção de sua profundidade, se talvez há água ali.

O poço que se abriu por instantes no Estádio do Arruda era escuro, macabro e selvagem. Era uma fenda que nos ligava ao que temos de mais primitivo e animalesco. Na pele de Everton Santana, num gesto insano, resolvemos testá-lo.

A notícia que tenho é que parece faltar pouco para chegarmos ao nível mais baixo desse poço maldito.

Pela frequência e capilaridade, deixaram de ser isolados os casos de violência extrema que vemos no noticiário. 

É o ladrão que foi espancado e amarrado ao poste, o pedófilo suspeito que teve o pênis cortado, a dentista que foi queimada viva por assaltantes, outra dentista que foi estuprada e assaltada em seu consultório. Teve a família que encontrou a cabeça do parente em uma mochila na porta de casa e o juiz de futebol degolado dentro de campo. A mulher arrastada no asfalto por uma viatura de polícia foi seguida pelo menino diabético morto pelo padrasto por excesso de insulina e o menino morto pela madrasta com uma injeção letal.

As capitais estão anestesiadas com a violência e as cidades pequenas chocadas a crueza do que seria impensável. Não há para onde correr.

Penso: será que foi sempre assim?

Talvez pedófilos, assassinos cruéis e toda sorte de barbaridade sempre tenham existido, a diferença é que hoje há muito mais olhos para ver. 

Com uma câmera em cada celular e uma notícia por segundo na internet, o que antes passaria batido hoje ganha repercussão nacional.

O caso mais recente acertou esta questão de maneira atordoante.

A mulher do Guarujá foi espancada até a morte pelos vizinhos por causa de um boato em uma página do Facebook. A página dizia que uma mulher estaria sequestrando crianças para rituais de magia negra e publicou um retrato falado.

Os detalhes do caso são cinzentos, mas o que se tem certeza é:
- Não houve nenhum caso de sequestro ou morte de crianças em rituais no Guarujá nos últimos meses.
- O retrato falado foi feito no Rio de Janeiro para descrever uma mulher que cometeu um crime em 2012.

Por acaso, o retrato se parece com a mulher do Guarujá. Os moradores, mesmo sem ter uma criança desaparecida para suspeitar, mesmo que a mulher fosse mãe de duas crianças, trucidaram-na porque ela se parecia com um desenho que eles viram no Facebook.

“Click, plau plau plau e acabou. Sem dó e sem dor”, diriam os Racionais.

Parece loucura, mas a privada atirada do Recife cruzou o mapa do país e acertou uma vítima no Guarujá.

As mãos têm o mesmo dono: a estupidez.