sábado, 29 de março de 2014

O morto-vivo


A manhã era comum. A pauta era trivial: mostrar terrenos de Mogi que são alvo de despejo de entulho.

Na Avenida Cavalheiro Nami Jaffet, na Vila Industrial, um comprido terreno acompanha toda a extensão da pista no lado direito. Papelão, plástico e restos de material de construção enfeiam ainda mais uma paisagem dominada verde ralo do matagal.

Em certa extensão do terreno, o mato rareava e havia um campínho de futebol. Embora as traves precárias de madeira estivesse de pé, a molecada teria dificuldade de desviar de um miserável sofá abandonado para marcar seus gols.

Fiz as fotos e até conversei com catadores de recicláveis que reviravam entulho. Já estava a 15 segundos de voltar para o carro quando escuto um "ôôô, ô rapaz". Desvio o olhar do visor da câmera e vejo uma senhora a uns 20 metros de mim, no meio do terreno, me chamando.

Fui ver o que ela queria.

- Acho que tem um rapaz morto aqui. Não se mexe, já chamei, gritei - me disse a senhorinha.

Perto do alambrado de uma empresa e de uma trilha que os moradores abriram para cortar o terreno, estava um bizarro arranjo. Havia um colchão, sobre ele uma lona amarela e embaixo de tudo um par de tênis despontava seu bico de borracha numa posição que sugeria que havia um corpo ali.

Era perto das 11h e o calor já estava grande. Não era a hora mais confortável para ficar deitado no meio do mato com um colchão mofado em cima.

Mais do que o cálculo mental de que o colchão seria suficiente para cobrir um corpo inteiro, o que mais assustava era a imobilidade dos pés. Por um momento pensei que por obra do acaso aquele par de tênis podia ter sido jogado e casualmente ficado naquela posição. Bobagem.

-Acho que está morto mesmo - me dizia a senhora após se afastar cinco passos com a minha chegada. Com esse gesto, ela entregava o abcaxi para mim. Eu que me virasse com o morto.

- Não vou mexer nele - eu disse. Vou chamar a polícia.

Não me lembro de ter ligado para o 190 antes desse dia.

No outro lado da linha, perguntas sobre o local, o estado do corpo. Iam mandar uma equipe para checar.

Me lembrei de fotografar o macabro arranjo. "Que bela virada de pauta", pensei. "Tomado pelo entulho, terreno vira local de desova de corpos", já imaginava na manchete de logo mais.

Moradores aflitos me relatariam a preocupação com a segurança à noite. Os catadores de recicláveis me revelariam histórias tenebrosas de encontros de cadáver pelas redondezas. Jovens cabisbaixos iam manifestar a tristeza em ver o campinho tão querido transformado em vala comum do crime. Resoluta, a Prefeitura implantaria um projeto para transformar aqueles dois quilômetros de terreno baldio na maior área de lazer da cidade que - em mangas de camisa - o prefeito inauguraria numa tarde de domingo.

Viro as costas para a cena do crime. Pego o celular e ligo para a redação

- Gladys, você não sabe o que aconteceu...

A mesma senhora que me chamou para mostrar o cadáver me chama novamente, mas não percebo.

Desligo o telefone e ela vem até mim.

- Moço o rapaz levantou! Acordou e me perguntou que horas são e saiu andando. Olha ele lá. Não estava drogado não. Também não estava bêbado. Estava normal.

Ao longe, um homem de camiseta e calça preta segue a passos firmes na calçada.

Volto para o colchão e a lona amarela. Revirados. Sem corpo.

Sem manchete.